domingo, 13 de janeiro de 2008
Luiz Guilherme G. Machado
Com o presente artigo, pretendemos contribuir com novos dados e esclarecimentos sobre as circunstâncias da criação, em 1520, do Ofício de Correio-Mor do Reino de Portugal, pelo Rei D. Manuel, na pessoa de Luís Homem. É do conhecimento geral que esta personagem já vinha dando provas de dedicação e fidelidade ao seu soberano antes da criação do Ofício de Correio-Mor, não só como mensageiro real em serviço pela Europa afora, mas também como soldado no longínquo Oriente. Provavelmente de uma origem modesta, Luís Homem era criado do Rei D. Manuel por volta de 1512, não possuindo por essa altura qualquer estatuto de nobreza, mas somente a especialidade de “Bombardeiro”.[1] Contudo e anteriormente às suas missões de correio real na Flandres, desempenhara, ainda que involuntariamente, o papel de correio de boas novas ao se encontrar na Índia a 25 de Novembro de 1510, quando Afonso de Albuquerque conquistou definitivamente a Cidade de Goa.
Embarcado na armada comandada pelo Capitão-Mor Gonçalo de Sequeira, composta por sete naus e que em Março desse ano de 1510 partira de Lisboa com destino à Índia para o comércio das especiarias,[2] Luís Homem chegou a Cananor em 8 de Setembro do mesmo ano,[3] justamente quando o Governador Afonso de Albuquerque se preparava para retomar a Cidade de Goa, depois de uma primeira tentativa frustrada de conquista no início daquele ano. Como Condestável de Bombardeiro, Luís Homem fazia parte da tripulação da Nau “Flamenga”, pertencente ao mercador português Tomé Lopes[4] e a outros armadores.[5] Esta nau fora provavelmente comandada por Lourenço Lopes,[6] outro comer-ciante português, mas estabelecido na Flandres, que por sua vez era sobrinho de um outro Tomé Lopes de Andrade, Feitor em Antuérpia e posteriormente Feitor da Casa da Índia, além de Embaixador de D. Manuel junto à Corte de Brabante[7] e de quem o futuro Correio-Mor seria mensageiro quando da sua missão naquela Corte, conforme veremos mais adiante.
A julgar pela qualificação de Luís Homem como comandante dos bombardeiros daquele navio, sem dúvida alguma que ele poderia ter sido muito útil na reconquista de Goa, mas tal não aconteceu. Durante a reorganização das forças para um novo ataque àquela cidade, Afonso de Albuquerque procurou auxílio nas armadas recentemente chegadas de Lisboa. Para além da frota capitaneada por Gonçalo de Sequeira, em que vinha o nosso futuro Correio-Mor, chegara uma outra composta por outras quatro naus sob o comando de Diogo Mendes de Vasconcelos, que tinha por destino o porto de Malaca.[8]
Num Conselho reunido em Cochim por Afonso de Albuquerque, houve grande divergências de opiniões entre os capitães-mores das armadas e os outros comandantes dos navios – inclusive com o célebre circum-navegador Fernão de Magalhães –, quanto à posição a ser tomada, tanto em relação ao projecto de reconquista de Goa – defendida por Albuquerque – como em relação ao cumprimento das instruções régias no tocante aos objectivos daquelas armadas.[9] Contudo, ficou estipulado que a Armada de Malaca, comandada por Diogo Mendes de Vasconcelos, auxiliaria Afonso de Albuquerque naquela empresa, pois o Governador da Índia prometera àquele comandante que depois daquela missão o auxiliaria na viagem até Malaca, o que de facto veio a ocorrer no ano seguinte, altura em que o mesmo Afonso de Albuquerque acabaria afinal por também conquistar aquela estratégica cidade asiática.[10]
Quanto à armada comandada por Gonçalo de Sequeira – onde se encontrava o nosso futuro Correio-Mor Luís Homem – o seu comandante, bem como os outros capitães dos navios, recusaram-se a participar do projecto. Alegaram como principal razão o facto de naquela viagem a armada ser composta exclusivamente por naus de mercadores, que por contrato com os feitores que os representavam nesta viagem, não queriam atrasar os seus negócios nem participar numa empresa que poria em risco o objectivo principal daquela missão, a qual visava somente a aquisição das preciosas especiarias.[11]
Esta atitude veio indispor Afonso de Albuquerque com Gonçalo de Sequeira,[12] tendo o governador sentenciado que mesmo antes da armada se abastecer das especiarias, teriam eles conhecimento da conquista e seriam os portadores da notícia para o Reino, pois “que nestas naus havia de mandar recado a El-Rei que ele ficava descansando dentro na Cidade de Goa”.[13] Afirmou ainda Albuquerque, que eles arcariam com a responsabilidade de perderem uma oportunidade de servirem ao seu soberano, acrescida da vergonha de não participarem de um tão grande feito.[14] O governador – de espírito mais guerreiro do que comercial – chegou ainda a queixar-se ao monarca: “se Vossa Alteza quer ser rico, não venham cá naus de mercadores para o negócio da Índia, naus há nela que abastem se lhe mandardes muitas lanças e muitas armas”.[15] Bem gostaria D. Manuel de seguir esse conselho, chegando a responder “que assim se fará, prazendo a Deus”.[16] Contudo, a debilidade financeira da Coroa frente ao audacioso projecto do tráfico indiano, já não podia dispensar o patrocínio decisivo dos particulares no lucrativo comércio asiático.[17]
Reconquistada definitivamente a Cidade de Goa em 25 de Novembro de 1510 e confirmando-se a profética previsão de Afonso de Albuquerque, a Armada de Gonçalo de Sequeira e com ela o nosso futuro Correio-Mor do Reino, acabaram por trazer de facto a Lisboa os maços de cartas com as notícias da importante conquista, bem como sobre outros assuntos e providências tomadas a respeito do império oriental que então se construiria e que agora já possuía a sua sede.[18]
Chegando a Portugal em meados do ano de 1511,[19] Luís Homem viajará em seguida para a Flandres, possivelmente para acompanhar as especiarias pertencentes à Coroa trazidas na viagem e que eram na sua maior parte negociadas naquela região através da Feitoria Portuguesa de Antuérpia. Isto é o que se poderá deduzir de um mandado de D. Manuel datado de 18 de Agosto de 1512,[20] no qual se refere a chegada de Luís Homem a Lisboa, vindo da Flandres, donde trazia a fazenda real e que deveria consistir no produto da venda de parte daquelas mercadorias.
Neste mesmo documento, fica patente o valimento que Luís Homem já possuía junto ao monarca, pois para além da confiança nele depositada para trazer o seu dinheiro, D. Manuel ordenava ao Feitor e mais Oficiais da Casa da Índia, que pagassem logo a Luís Homem, em pimenta, o que lhe ficasse líquido dos trinta e quatro quintais que trouxera na nau em que fora à Índia, para que ele a pudesse levar consigo à Flandres onde era novamente enviado a serviço do rei.[21]
Este pagamento em pimenta correspondia à sua “quintalada e camarote”, a que Luís Homem tinha direito em consequência da sua viagem ao oriente e que era uma forma de incentivo dado pela Coroa a quem participasse no grande projecto das navegações dos descobrimentos. Consistia isto, numa parte do seu soldo pago sob a forma de licença de importação para a metrópole de uma certa quantidade de especiarias compradas com o seu próprio dinheiro, mas livre de frete. Estas mercadorias eram arrumadas em câmaras reservadas à tripulação do navio e que variavam de tamanho conforme a categoria do tripulante. No caso de Luís Homem, como Condestável de Bombardeiro, teve ele direito de trazer cinco quintais e duas arrobas de pimenta. Porém, tendo comprado também os lugares das quintaladas de outros onze tripulantes do navio em que viajava, totalizou o direito a trinta e quatro quintais os quais, após abatida a quebra de 10% e o “quarto e vintena” (correspondente aos direitos de alfândega), se traduziram num valor líquido de vinte quintais, duas arrobas e vinte arráteis de pimenta, que ele próprio levaria para a Flandres.[22]
Note-se que a concessão dada a Luís Homem, de poder levantar a sua parte em pimenta, consistia numa excepção. A partir de 1504, um novo regime comercial entrou em vigor através do monopólio real e todas as especiarias descarregadas em Lisboa passaram obrigatoriamente a dar entrada na Casa da Índia que, por sua vez, as negociava a preço único. Somente depois de vendidas é que era entregue a cada mercador o valor em dinheiro correspondente ao que cada um possuía lá depositado.[23] Dessa forma, Luís Homem obteve o raro privilégio de poder negociar directamente na Flandres o preço da sua mercadoria, conseguindo assim uma melhor remuneração do seu investimento.
Nessa época, a Cidade de Antuérpia era já o principal centro distribuidor das especiarias e dos produtos coloniais portugueses no norte da Europa, onde Portugal possuía uma importante comunidade de mercadores reunidos em torno da Feitoria Portuguesa, que por sua vez servia como uma representação comercial e diplomática da coroa naquela região. Os portugueses formavam uma das principais “nações” estrangeiras naquela cidade, possuindo vários privilégios e isenções outorgados pela casa reinante dos Habsburgos. Assim sendo, será nesse ambiente de intenso tráfego comercial – em que Luís Homem também participou –, que se estabelecerão as mais estreitas relações diplomáticas entre a Corte Portuguesa e a Casa da Áustria. Tais relações terão ainda como consequência, um constante intercâmbio de correspondência epistolar entre Portugal e a Flandres.
Será nesse sentido que D. Manuel enviará em finais de 1514 à Corte do seu primo direito, o Imperador Maximiliano de Habsburgo (eram ambos netos do Rei D. Duarte), o Feitor da então opulenta e poderosa Casa da Índia, Tomé Lopes de Andrade, com amplos poderes sobre a Feitoria Portuguesa de Antuérpia.[24] Esta missão visava negociar com os grandes potentados do comércio e das finanças alemães (Fugger, Hochstetter e Welser), o fornecimento de cobre para suprir as necessidades das Armadas da Índia e do comércio oriental. Por outro lado, visava também tratar de questões políticas junto ao Imperador, relativas às negociações sobre o casamento da Infanta D. Leonor, sua neta, com o Príncipe herdeiro Português, D. João e da irmã deste, D. Isabel, com o seu outro neto e futuro Imperador, o Arquiduque Carlos de Áustria.[25]
Tomé Lopes de Andrade – já referenciado no início deste artigo – havia sido Feitor em Antuérpia entre 1498 e 1505, justamente no tempo em que chegaram àquela cidade os primeiros navios portugueses carregados de especiarias asiáticas e quando por isso ali se firmou o primeiro contrato de venda daquele produto naquela região, no ano de 1503.[26] Mercador experiente e arguto diplomata, era muito considerado na Corte de Brabante, onde também fora enviado como Embaixador entre 1509 e 1511, tendo negociado o importante acordo que concedia o estatuto de “nação mais favorecida” aos portugueses residentes naquela cidade, ficando igualmente garantida uma casa para sede da Feitoria, mediante uma doação da municipalidade de Antuérpia.[27]
Quando da sua chegada à Augsburgo em Maio de 1515, Tomé Lopes refere em carta a D. Manuel, que: “Quando passei por esta cidade para ir ao Imperador, os governadores dela e assim os Fugger, Hochstetter, Welser e todas as outras companhias e mercadores, me fizeram muita honra e me enviaram muitos presentes; e assim o fizeram quando tornei com o Imperador.” Nesta mesma carta, numa clara alusão ao prestígio que Portugal alcançara na cena internacional daquele tempo, concluía: “O Imperador toma grande passatempo em saber das cousas da Índia e dos reis que são sujeitos a Vossa Alteza, e há por mui grande feito a guerra de África, assim no Reino de Fêz, como no de Marrocos, sobre que muito me tem perguntado tudo. Os senhores e povos não falam em nenhuma cousa tanto, como em estas conquistas de Vossa Alteza.”[28] Já em Agosto do mesmo ano de 1515, Tomé Lopes comunicava a D. Manuel que aguardava a chegada do Imperador, que vinha de Viena, para se despedir[29] e seguir para Bruxelas aonde se avistaria com o neto de Maximiliano, o Arquiduque Carlos de Áustria, soberano dos Estados de Brabante e herdeiro presuntivo do trono de Espanha, por ser o filho mais velho de Joana “a Louca” e esta a única filha dos Reis Católicos.
No entanto, pouco depois, a 23 de Janeiro de 1516, o Rei Espanhol, Fernando o Católico, viria a falecer causando grande apreensão na Corte Portuguesa, manifestada através das cartas régias datadas de 1º de Fevereiro daquele ano e enviadas aos governadores das diferentes fortalezas do Reino, para que as guardassem e velassem com toda a segurança e cuidado.[30] A sucessão ao trono de Castela revelou-se uma questão delicada visto a herdeira directa, Joana a “Louca”, estar internada em Tordesilhas como incapaz e o seu jovem filho e herdeiro Carlos, então soberano de Brabante, se encontrar em Bruxelas. Pelo testamento do falecido rei, ficava nomeada uma regência para governar em nome do seu neto, o Arquiduque de Áustria, até a sua chegada à Castela para ser jurado em Cortes conforme a tradição espanhola. Contudo, os acontecimentos precipitaram-se e Carlos apressou-se em tomar o título real espanhol em Março desse mesmo ano de 1516, estando ainda em Bruxelas, para assim poder negociar em melhores condições uma paz com Francisco I, Rei de França, que viria a ser o seu principal rival no cenário europeu daquele tempo. Tal atitude causou algum descontentamento e apreensão em Espanha, resultantes da expectativa sempre adiada da sua vinda para tomar posse e residir naquele Reino, facto que só viria a ocorrer em 7 de Fevereiro de 1518. Assim, será nesse clima de instabilidade e incerteza que o Rei D. Manuel procurará saber através dos seus servidores em Flandres e em Castela, de todas as notícias relacionadas com o desenrolar dos acontecimentos, de forma a levar a bom termo a sua política europeia,[31] justamente num momento em que o seu império colonial se encontrava em grande expansão noutras partes do mundo. Dessa forma, surgirá novamente Luís Homem como elo de ligação entre a Corte Portuguesa e os seus correspondentes no estrangeiro.
Os contactos estabelecidos em Bruxelas por Tomé Lopes com o jovem Rei Espanhol e os seus mais próximos Conselheiros, nomeadamente o Monsenhor de Chièvres, Guilherme de Croy, o Grão Chanceler de Borgonha, Jean Le Sauvage, e em especial, um dos Secretários daquele monarca, o Português Cristóvão Barroso,[32] revelar-se-ão de uma enorme importância naquela conjuntura. A confirmar este facto, veja-se a carta de um dos correspondentes de D. Manuel na Flandres, Rui Fernandes de Almada, onde se afirma que o enviado português, Tomé Lopes, “tem grande crédito com estes que governam, ajudou aqui a muitos, é grande amigo do Conde Dom Fernando[33] e assim de todos”.[34] Num primeiro momento, foi intenção de D. Manuel que o seu enviado à Corte de Brabante retornasse o mais depressa possível a Portugal, depois de prestar as condolências ao novo rei pela morte do seu avô e de saber quando seria sua intenção de vir a Castela tomar posse do seu novo reino.[35] Ocorreu, porém, que o Secretário do soberano espanhol comunicasse a Tomé Lopes que o novo monarca teria também muito gosto com os casamentos em perspectiva, notícia esta que o enviado português transmitiu imediatamente a D. Manuel, através do futuro Correio-Mor Luís Homem, que rapidamente partiu para Portugal com as importantes novidades.[36]
Para uma maior diligência na sua viagem, Luís Homem irá aproveitar a estrutura montada por Francisco de Taxis, Mestre dos Correios da Corte do Imperador Maximiliano e o primeiro representante de uma família que se transformará em sinónimo de “correios” por toda a Europa.[37] Tendo sido encarregado pelo Imperador de criar uma rede de ligação postal dentro das fronteiras do vasto Império da Casa dos Habsburgos, Francisco de Taxis havia já organizado por volta de 1516, várias carreiras de postas centralizadas em Bruxelas, donde partiam correios com alguma regularidade para Viena, Roma e Madrid. Estas carreiras consistiam numa série de cavalariças dispostas ao longo do caminho (postas), onde um Mestre chamado de “Posta” tinha como obrigação ter sempre pronto um certo número de cavalos para serem alugados aos correios ou a viajantes, os quais, por sua vez, eram revezados e substituídos nas postas seguintes. Luís Homem seguirá justamente pela carreira de Madrid, tendo percorrido sessenta e oito mudas de postas entre Bruxelas e Burgos, ao custo de um cruzado por cada uma. Em Burgos adquiriu um cavalo por quinze cruzados, seguindo então até Almeirim, onde se encontrava a Corte Portuguesa. Luís Homem gastara ao todo no caminho – com mais cinco cruzados para a despesa da sua pessoa – oitenta e oito cruzados, dos quais uma parte lhe tinha adiantado Tomé Lopes em Bruxelas. Esta quantia foi mandada saldar por carta régia de 11 de Abril de 1516, pela qual D. Manuel ordenou a Silvestre Nunes, então Feitor na Flandres, que pagasse a ambos o que lhes era devido.[38]
Entretanto, Tomé Lopes, que adoecera gravemente, ficará “aguardando cada hora por Luís Homem”.[39] Embora tentando voltar o mais rapidamente possível à Flandres com a correspondência real, o futuro Correio-Mor do Reino se atrasou, levando aproximadamente dois meses para chegar a Antuérpia, pois “veio ter à Baiona e esteve aí muitos dias aguardando por tempo, e daí veio ter a Inglaterra e disse veio por terra [sic] até esta Vila”.[40] Na sua chegada encontrou Tomé Lopes moribundo, mas ainda em condições de lhe passar uma declaração a 20 de Junho do mesmo ano de 1516, do gasto de mais vinte cruzados que teve na sua viagem, “no qual caminho e passagem fez muito mais despesa”.[41]
Tomé Lopes veio a falecer uma semana depois, a 28 de Junho, ocorrendo não serem entregues as cartas do Monarca Português ao jovem Rei Espanhol e nem aquela para os seus Conselheiros, caso que muito desconsolou D. Manuel, pois “bem nos provera serem dadas nossas cartas ao menos por não passar tantos dias sem serem lá sabidos nossos recados”.[42] Esta decisão fora tomada por Lourenço Lopes, já nosso conhecido, sobrinho do falecido Feitor da Casa da Índia e antigo comandante da Nau Flamenga da Armada de Gonçalo de Sequeira – a mesma em que Luís Homem servira como Condestável de Bombardeiro – que julgou melhor recambiar a correspondência para Portugal, tendo em vista a delicadeza da situação. D. Manuel, compreendendo a atitude de Lourenço Lopes, o fez suceder ao seu falecido tio nesta missão tornando a enviar Luís Homem à Flandres com as mesmas instruções e cartas que enviara a Tomé Lopes, assim como ao Rei de Castela e a seus Conselheiros, em 20 de Julho do mesmo ano de 1516.[43] Nelas, D. Manuel respondia ao Secretário do Rei Espanhol, Cristóvão Barroso, que sobre os casamentos projectados entre os príncipes de ambas as Coroas, “que por este negócio ser da qualidade que vedes e de tanta importância, que convém ser praticado e falado por pessoa de que tanta confiança se tenha como o caso o requer [...] E a pessoa que assim havemos de enviar, temos já ordenada e se despacha e faz prestes, para logo após este se partir.”[44] Tratava-se de Pedro Correia, do Conselho do Rei, Fidalgo da Casa Real e Senhor de Belas, descendente de antigos servidores da família de D. Manuel enquanto Duques de Beja e amigo pessoal de Afonso de Albuquerque.[45] Para além de Pedro Correia, como Embaixador, faziam parte da comitiva João Brandão (que fora e tornaria a ser Feitor em Antuérpia) como Escrivão da Embaixada, bem como Luís Homem, que iria servir como Correio. A Lourenço Lopes, recomendou D. Manuel que auxiliasse o embaixador no que fosse necessário.[46]
Havendo partido a Embaixada de Lisboa somente a 15 de Outubro de 1516, sucedeu neste meio tempo um facto que julgamos determinante no desenrolar desta missão diplomática. Aproximadamente um mês antes da partida, a 8 de Setembro, nascera o Infante D. António, décimo filho do Rei D. Manuel com a sua segunda mulher, a Rainha D. Maria, que tendo sido baptizado dois dias depois e sem cerimónias “por o Infante estar doentinho”, veio a falecer logo a 1º de Novembro seguinte.[47] Damião de Góis relata na sua Crónica que “a Rainha Dona Maria ficou tão mau tratada do parto do Infante Dom António, que até à hora da morte nunca se mais achou bem porque se lhe gerou uma apostema dentro nas entranhas, sem em toda a medicina haver cousa que lhe pudesse dar saúde, pelo que procedendo esta má disposição com que se lhe acrescentavam de dia em dia gravíssimas dores, faleceu em Lisboa nos Paços da Ribeira aos sete dias do mês de Março do ano do Senhor de mil quinhentos e dezassete, em idade de trinta e cinco anos”.[48] Assim sendo, quando da partida da Embaixada de Pedro Correia, já se perspectivava na Corte a possibilidade de uma nova viuvez de D. Manuel, facto este que veio a ocorrer seis meses depois, ainda durante a permanência da embaixada na Flandres, que só viria a concluir-se em 15 de Abril daquele ano de 1517.[49]
Pedro Correia e a sua comitiva seguiram por terra até Paris, aonde se avistaram com o Rei de França, Francisco I, que recentemente assinara em Noyon, a 13 de Agosto de 1516, o almejado tratado de paz com o novo Monarca Espanhol, Carlos I. Em seguida continuaram a viagem até ao seu destino, a Corte de Bruxelas, onde finalmente chegaram a 8 de Janeiro de 1517.[50] Lá, o Embaixador Português escreveu a 13 de Janeiro a sua primeira carta relatando as conversações iniciais que tivera com algumas personagens que se encontravam naquela Corte e na qual constava que em relação aos casamentos em perspectiva, “todos hão por certo que eu não venho à outra cousa senão a isso e estão mui ledos com a minha vinda”. Cristóvão Barroso (Secretário do Rei Espanhol e principal interlocutor do assunto), acrescentava ainda “que se eu nisso não falar, que mo não hão de cometer nem tocar, pela vergonha que cá entre eles é as mulheres cometerem os homens”.[51] Na realidade, tal observação significava muito mais que apenas um escrúpulo protocolar ou social. A posição dos negociadores flamengos era no sentido de procurar uma forma vantajosa de iniciar as difíceis discussões sobre os dotes dos casamentos e de valorizar ao máximo a aliança que surgiria entre as duas Coroas com aqueles enlaces. Por outro lado, essa postura traduzia também uma atitude de afirmação política por parte da Casa de Habsburgo face à sua crescente posição na Europa, que em breve se expandiria para o resto do mundo. Não obstante, as instruções de Pedro Correia eram no sentido de esperar pela oferta espontânea da mão de “Madama Leonor”, tendo em vista os contactos já efectuados com o falecido Tomé Lopes e do longo tempo em que se vinha trabalhando nesse assunto.[52] Além de que, o embaixador assinalava também na sua carta, que a concretização desse casamento passaria por uma elevada despesa pecuniária com os intermediários do negócio, pois “este uso de se fazerem as cousas por dinheiro, anda cá mui praticado”. Pedro Correia tivera informações de pessoa muito próxima ao Imperador Maximiliano, que em relação aos casamentos, ele “desejava muito de se fazerem e que seria bem Vossa Alteza dar XXX mil cruzados a Chièvres por consentir nisso”.[53]
Noutra carta de 5 de Fevereiro de 1517, o Embaixador Português, ao relatar a sua primeira audiência com o jovem Soberano Espanhol que ainda não completara 17 anos de idade, observava que “os negócios de cá todos são na mão de Chièvres e do Chanceler”,[54] sendo somente através deles que se resolveria algum assunto. Dessa visita, comentava ainda o Embaixador que “El-Rei tem mui boa disposição de corpo e é gentil homem de rosto, pero na boca tem alguma desgraça por não chegar bem um beiço ao outro; fala mui pouco e a meu parecer não tem a língua bem despejada; não entende em negócios senão quando alguma hora o Chièvres chama e faz estar em alguma; sua ocupação principal é brincar com flamengos sem querer que castelhanos nisso entrem, antes me dizem que lhe aborrecem; não fala nada espanhol nem creio que o entende, senão se for algumas poucas palavras”. Com relação a almejada noiva, descreve ainda que “Madama Leonor não é mui formosa nem lhe podem chamar feia, tem boa graça e bom despejo, e parece-me de condição branda e avisada; não tem bons dentes e é pequena de corpo, e pareceu ainda mais porque cá não trazem chapins que passem da altura de dois dedos; é grande dançarina e folga de o fazer”. A estas considerações, acrescentava Pedro Correia enfaticamente que “toda esta Corte há por cousa mui certa que eu não venho a al senão a seu casamento e falam nisso publicamente, tendo sabido que ela e todos os de sua casa o desejam quanto é razão, e parece-me que ficariam mui desconsolados se soubessem como a isso não são vindos.”[55] Logo em seguida, a 8 de Fevereiro, o Embaixador teve a sua primeira entrevista com o Imperador Maximiliano na Cidade de Antuérpia, no qual o Imperador nunca se referiu ao assunto dos casamentos em causa. Assim, depois destes primeiros contactos e não havendo da parte daquela Corte nenhum sinal claro sobre o início das negociações, determinou Pedro Correia “não deter mais Luís Homem”.[56] Para isso tinha já ordenado ao Feitor de Flandres, Silvestre Nunes, que lhe entregasse cem cruzados “como lhe já outras vezes foram dados para fazer o dito caminho”.[57] Partindo para Portugal no dia 9 de Fevereiro de 1517, o futuro Correio-Mor chegará a Lisboa por volta do dia 26 de Fevereiro.
D. Manuel, avaliando a reacção do Rei de Castela, dos seus Conselheiros e do Imperador à Embaixada que lhe enviara, resolveu responder a Pedro Correia que “vendo como por ele ou da sua parte vos não foi falado no negócio dos casamentos nem também o Imperador, pois aí se acertaria”, ordenava “que vós não façais lá mais detenção nem falais em cousa alguma tocante aos ditos casamentos”. E que no caso de haver por parte de algum dos conselheiros régios alguma insistência em iniciar as negociações depois desta notícia, que então “trabalhareis o que puderdes de saber de vosso, pela melhor maneira que vos parecer, o que se fará no dote”, acrescentando “que pois tanto se afirma a vinda Del-Rei este Verão à Castela, ele devia folgar de trazer consigo Madama Leonor, sua irmã, porque ordenando Nosso Senhor neste casamento se entender, estivesse cá mais perto”.[58]
Munido destas instruções e de outras cartas com que o Rei D. Manuel mandava ao seu Feitor em Antuérpia recompensar pecuniariamente e através de promoções em cargos, várias personagens que auxiliaram aquela embaixada, retornou Luís Homem à Flandres em 3 de Março de 1517. Tendo chegado à Bruxelas a 17 do mesmo mês,[59] levou ao todo somente 37 dias na sua missão de levar as correspondências e voltar com as respostas, como vemos pela carta do Escrivão da Embaixada, João Brandão, de 30 de Março de 1517: “Senhor, por um correio que daqui partiu sete ou oito dias há, escrevi a Vossa Alteza tudo o que até aqui era passado e entre outras algumas cousas lhe escrevi como Luís Homem chegara a esta Vila de Bruxelas a 17 dias deste mês de Março, às 8 horas do dia; e por conta acháramos que não pusera no caminho que pouco mais de catorze dias e meio, se partiu a dois dias de Março como me o secretário escreveu, ainda que ele diz que ele partira a 3 do dito mês. Como quer que seja, fez mui grande diligência segundo cá dizem todos os que sabem de postas e isto pelo mal aviamento que tem em Portugal, porque doutra feição, não seria muito ir em dez dias se tivesse o aviamento que tem por França, porque em cinco dias vai uma posta daqui a Burgos que são trezentas léguas. E por ele recebemos todas as cartas que nos por ele mandou Vossa Alteza, as quais mui bem vimos e entendemos e em todo, Senhor, se fará como manda e ordena.”[60]
Apesar desta eficiência, Luís Homem reclamará cerca de um ano depois, que Pedro Correia tinha mandado descontar do seu salário “certo tempo que gastei em vir cá a Portugal com cartas a Sua Alteza, o qual tempo ainda me devem”.[61] Na verdade, porém, é que ao ter demonstrado mais uma vez a sua vocação para o serviço postal, virá em breve a ser recompensado pela sua dedicação e fidelidade à coroa.
No entanto, as novas instruções de D. Manuel para que regressasse a Portugal a embaixada que enviara, causaram uma surpresa geral, a começar pelo próprio Embaixador Pedro Correia, que escreveu: “ainda que sempre me pareceu que Vossa Alteza não voava de boa vontade esta perdiz, algum tanto estava descuidado de me mandar assim ir sem passar mais avante no negócio”, acrescentando que quando falou da sua ida ao poderoso Monsenhor de Chièvres e ao Chanceler Le Sauvage, “ficaram tão enleados que não puderam dissimulá-lo”.[62] Rui Fernandes de Almada, que acabava de ser nomeado Escrivão da Feitoria de Flandres, escreveu também: “Aqui soube do descontentamento que estes homens todos têm por Vossa Alteza mandar ir o embaixador, porque certo eles sempre cuidaram que ele vinha ao que todo mundo presumia” e que somente “eles aguardavam a vinda de Luís Homem para que se abrisse caminho”.[63]
Esta notícia foi provavelmente bem recebida por Francisco I de França, conforme a opinião de Pedro Correia, que observara nas conversações que tivera naquela Corte, o desagrado com os casamentos planeados, pois em França estariam mais interessados em enfraquecer as novas alianças do Rei de Espanha, do que propriamente incentivá-las.[64] Contudo, por uma ironia do destino, D. Leonor, que viria a ser Rainha de Portugal, através do terceiro casamento de D. Manuel, foi também Rainha de França. Após enviuvar do Rei Português, veio a contrair novo casamento em 1530, justamente com Francisco I. Seria este enlace uma das consequências do Tratado de Paz das “Damas”, assinado em Cambraia, entre os eternos rivais Carlos V e aquele Soberano Francês.
Depois de despedir-se dos Monarcas Habsburgos e seguindo as instruções que recebera, retornou Pedro Correia com a sua comitiva a Portugal, passando primeiramente por Inglaterra, para cumprimentar Henrique VIII em nome de D. Manuel e em seguida novamente por França, para mais uma vez se avistar com Francisco I.[65] Terminava assim, a tão pouca conhecida embaixada portuguesa aos principais soberanos europeus daquele tempo.[66] Para Luís Homem, essa Missão Diplomática serviu para demonstrar mais uma vez as suas capacidades como mensageiro real, além da oportunidade de tomar conhecimento mais preciso do serviço postal montado pela Família Taxis, o que lhe viria a servir de exemplo quando da tentativa de montar uma estrutura semelhante em Portugal.
Entretanto, o recado de D. Manuel ao seu sobrinho Carlos, para que levasse consigo a sua irmã Leonor a Castela, foi prontamente atendido. A notícia do falecimento da Rainha Portuguesa D. Maria e a surpresa causada pelo retorno inesperado da embaixada de Pedro Correia, teriam contribuído para que a Corte Castelhana não perdesse mais uma oportunidade de aprofundar a sua aliança com o seu poderoso vizinho e assim retomar a estratégia de construção de uma futura União Ibérica. Por seu lado, D. Manuel também aspirava ao mesmo fim, além de desejar contribuir para uma paz duradoura na península e poder continuar com a sua expansão ultramarina, que por essa época se encontrava no auge. Assim sendo, quando o jovem Rei Espanhol prestou juramento às Cortes reunidas em Valhadolide, em Fevereiro de 1518, D. Manuel enviou como Embaixador àquela Corte o seu Camareiro-Mor, Álvaro da Costa, para lhe prestar homenagem e negociar o seu terceiro casamento. Conforme nos relata Frei Luís de Sousa, nos seus “Anais Del-Rei Dom João III”, sobre a reviravolta e final desenlace destas negociações, que “sendo o mandado público dar-lhe parabéns da vinda, foi o secreto que trabalhasse para si, matrimónio com a Infanta D. Leonor sua irmã; e foram os poderes que lhe deu tão largos e sem limite, que primeiro se soube em Portugal estar concluído, que começado.”[67]
Tendo prevalecido esta versão na historiografia portuguesa sobre o inesperado desfecho deste casamento, já que originalmente o enlace seria com o sucessor de D. Manuel, o Príncipe D. João, na verdade, a proposta de casamento com o próprio Rei Português foi originalmente sugerida pela Corte Espanhola. De acordo com as instruções recebidas por D. Miguel da Silva – Embaixador Português em Roma e encarregado de obter junto ao Papa Leão X, a Bula de Dispensação para aquele casamento, exigida por causa da consanguinidade dos noivos –, D. Manuel afirmava claramente que a iniciativa da oferta partira de Castela. Através da carta régia de 29 de Maio de 1518, informava o Rei Português ao futuro Bispo de Viseu, D. Miguel da Silva, que Álvaro da Costa, ao visitar o Rei Espanhol, “se ofereceu lhe ser lá falado em casamento da Infanta Dona Leonor, sua irmã, connosco.” Argumentando o monarca, que “por nos parecer pelos impedimentos que havia e até agora há nos casamentos de meus filhos, [...] quisemos nisso entender e aceitar o quanto da parte de lá nos foi falado e requerido”. Acrescentando ainda, que comunicasse ao Papa que “folgamos de entender neste casamento para que fomos requerido, quando para outras cousas se nos apresentaram grandes impedimentos”.[68] Seria esta uma solução de consenso para ambas as Coroas, apesar do mal estar gerado nalguns sectores mais próximos do Príncipe D. João, postura essa bem exemplificada pelo caso de D. Luís da Silveira – seu Conselheiro e futuro Conde de Sortelha – que acabou sendo desterrado da Corte por D. Manuel, por haver patenteado o seu desagrado.[69]
Não ficariam por aí os entendimentos sobre esse casamento. O Embaixador Álvaro da Costa confirmara a D. Manuel, a ideia já ventilada por Pedro Correia, de que seria necessário fazer uma considerável despesa com os Conselheiros do Rei Espanhol para a viabilização daquele enlace. Dessa forma, D. Manuel instruiu o seu Embaixador em Castela por carta régia de 28 de Abril do mesmo ano de 1518, que “posto que em nossas cousas não tenhamos este costume como sabeis, pero pelo que nisso vos temos mandado que fizésseis e tendes feito e falado com o Chanceler, e pelo ponto em que este negócio já está e porque mais prestes se conclua, nós havemos por bem de a Chièvres e ao Chanceler, fazermos mercê de vinte mil cruzados.”[70]
Entretanto, haveria ainda mais uma outra despesa significativa, sendo agora para com o célebre Papa Leão X, que naquele tempo se achava empenhado em obter maiores recursos para poder concluir a Basílica de São Pedro e também decorá-la com a arte mais preciosa. Teria sido esta, aliás, uma das razões da reacção de Martim Lutero contra a venda de novas indulgências para aquele fim. Porém, a ela não pôde escapar D. Manuel, ao requerer através do seu Embaixador em Roma, a tal Bula de Dispensação tão necessária à legitimidade do seu casamento.
A instrução do Rei Português fora para que D. Miguel da Silva gastasse “até oito ou dez mil cruzados se tanto se houver mister despender nisso”, contudo “vós, como sempre nos servis tanto a nosso prazer, vede se isto se pode fazer grátis ou ao menos com pouca cousa”.[71] Sobre a entrevista para o pedido daquela Bula pelo futuro Bispo de Viseu ao Papa Leão X, o Embaixador Português narrava que “Sua Santidade não se espantou nada porque havia quatro ou cinco dias que o Núncio lhe escrevera fumo disto, mas mostrou tanto prazer que cuidei certo que me havia de despachar tornando-me em cima dinheiro.”[72] De facto, D. Miguel relatava que o Papa “respondeu-me que era contente e que a dispensação se fizesse, mas que aparelhasse muitos mil ducados”, ao que respondera o embaixador “que cria que Sua Santidade zombava e me queria fazer estimar mais a graça, pois se me em falar de siso e pedia quinze mil ducados, então de siso mais pedia que me fazia medo.” Depois de muita barganha, “ por derradeiro desceu a quatro mil, jurando-me de verdade que por menos um real a não havia de haver e dizendo-me que lhe mostrasse a carta de Vossa Alteza e que me prometia de me quitar dois mil ducados da comissão que por ela me dava,” o qual o embaixador ponderou que “não lhe podendo mostrar a carta que me tanto mais larga comissão dava [...] não me pareceu desserviço de Vossa Alteza aceitá-la a Bula e acerca da paga disse que eu não tinha mais de três mil; que aprouvesse a Sua Santidade os mil descontar da dívida que me devia. Foi disso contente e assim houve a Bula”. Informava ainda D. Miguel, que a remeteria à Corte de Castela por um correio expresso, conforme as ordens recebidas, e que “se for com tamanha presteza como aqui foi despachada e mandada, bem irá, que nunca se viu em um mesmo dia haver o correio e despachar Bula, e despachar outro" correio.[73]
Finalmente e depois de tantas peripécias, consumou-se o casamento em Novembro daquele ano de 1518, ocorrendo, porém, lograr-se prematuramente os intentos do Rei Português, devido ao seu falecimento três anos depois a 13 de Dezembro de 1521. D. Manuel chegou ainda a ter uma filha deste casamento, a cultíssima Infanta D. Maria, personagem importante do Renascimento Português do séc. XVI, falecida em 1577.
Contudo, cerca de um ano antes, em Évora, por carta régia datada de 6 de Novembro de 1520, ordenava D. Manuel: “que havendo nós respeito aos serviços que temos recebidos e ao diante esperamos receber de Luís Homem, Cavaleiro de nossa Casa, e por ser pessoa que no Ofício de Correio-Mor de nossos Reinos nos saberá bem servir e assim a todos mercadores e pessoas que quiserem enviar cartas de umas partes para outras, e com todo recado, fieldade e segredo que para tal caso cumpre, e querendo-lhe fazer graça e mercê: temos por bem e o damos novamente,[74] daqui em diante, por Correio-Mor em nossos Reinos”.[75] Culminava-se desta forma, o processo iniciado anos antes quando Luís Homem, ao servir como soldado no Oriente e depois como mensageiro real pela Europa afora, acabava por ver recompensado os seus serviços através de um novo estatuto social. Passando a ter um estatuto de nobreza, como cavaleiro da casa real, recebeu ainda um ofício público inédito em Portugal e claramente inspirado no modelo da Família Taxis. Conforme afirmava D. Manuel na mesma carta régia: “queremos e nos praz que ele tenha com o dito ofício, todos os privilégios, graças e liberdades que os Correios-Mores tem nos outros reinos onde os há e soi de haver”. Para uma melhor compreensão deste importante diploma, especificaremos a seguir os seus principais dispositivos.
Quanto às suas obrigações, Luís Homem teria que “dar continuadamente em nossa corte e assim ter por si pessoa que por ele esteja na nossa Cidade de Lisboa, e de ter sempre todos os correios que forem necessários para irem a quaisquer partes que seja, assim com cartas nossas, como de quaisquer mercadores e pessoas que lhas quiserem dar”. Entretanto, como remuneração deste trabalho, “levará por isso o preço que se com cada pessoa concertar segundo a disposição do tempo e os lugares para onde as tais cartas houverem de ir e o tempo em que quiserem que lhas levem”.
Para garantia do monopólio postal, especificava que “nenhum mercador nem pessoa outra, não poderá fazer correio que leve cartas para nenhuma parte de que se haja de levar porte, senão por mão do dito Luís Homem, salvo se quiserem mandar suas cartas por outras pessoas que não sejam correios, podê-lo-ão fazer”. Ou seja, não se impedia a troca de correspondência em geral, somente se salvaguardava o ofício específico de “mensageiros correios”, franqueando, por assim dizer, os “moços de recados”. Alertava-se, porém, “sob pena de qualquer que os ditos correios fizer, pagar cem cruzados por cada vez, a metade para a nossa câmara e a outra metade para o dito Luís Homem”.
Como proventos do seu ofício, Luís Homem “levará aos correios que assim fizer, o dízimo do que houverem de portes das ditas cartas, como se costuma levar nas outras partes, e será obrigado de os encaminhar e fazer agasalhar, e lhe arrecadar e fazer bons seus portes, de maneira que não possam perder nenhuma cousa”. Por outro lado, como acima foi referido, “este dízimo levará aos correios que ele tiver somente, e os mercadores poderão dar suas cartas e enviá-las por quaisquer pessoas que quiserem, não sendo os próprios correios que o dito Luís Homem tiver”.
E para o bom funcionamento das carreiras de postas que seriam criadas, ordenava ainda El-Rei D. Manuel: “e assim nos praz para melhor aviamento dos ditos correios, que nos lugares de nossos reinos onde parecer ao dito Luís Homem que são necessários cavalos de postas, haja em cada lugar até dois homens obrigados a terem os ditos cavalos e de os darem aos ditos correios por seu dinheiro; e estes queremos que sejam escusos de todos os encargos do concelho, como se tivessem disso privilégios por nós assinados e passados pela nossa chancelaria”, especificando ainda, que “estes homens privilegiados, serão nos lugares que nós, por nosso regimento, ordenarmos.” [76]
Numa perspectiva institucional, no que consistiria então, um ofício de Correio-Mor? Antes de mais nada, num ofício de natureza pública e burocrática. Ou seja, através da criação e provimento dos mais diversos e variados ofícios públicos por parte dos soberanos portugueses durante o antigo regime (entre os séculos XV e XVIII), procurava a coroa, então em franco processo de centralização política, delegar poderes e funções em áreas em que o poder real ainda não poderia se organizar e se expandir de forma satisfatória, por não ter ainda uma estrutura funcional ampliada. Surgia dessa maneira, a génese da moderna burocracia. Os ofícios públicos, então criados, tinham um carácter de património, onde a pessoa que o servia possuía a sua “função”, caracterizada “como um conjunto de direitos e deveres exercitáveis no interesse público”.[77] A ideia do monopólio postal na mão de um único indivíduo, vinha suprir uma necessidade embrionária de uma estrutura de correios organizada para servir o público em geral e aos mercadores em particular, abrindo caminho para o seu desenvolvimento. Por outro lado, constituía uma solução racional por parte do Estado, tendo em vista a impossibilidade da coroa em arcar com o ónus da criação de uma infra-estrutura postal pública permanente, permitindo dessa forma o recurso à iniciativa de particulares para superar as lacunas da sua administração. O provimento dos ofícios públicos corresponderia também, ao reconhecimento régio da dedicação e fidelidade dos seus vassalos mais prestimosos e serviriam como compensação de serviços relevantes prestados à coroa.
No entanto, há que chamar a atenção para um outro facto da maior importância. A criação do ofício de Correio-Mor, não surgia de uma necessidade premente de melhoramento do serviço de comunicações da coroa, conforme se poderia presumir dentre as obrigações de Luís Homem e que consistia em “ter sempre todos os correios que forem necessários para irem a quaisquer partes que seja, assim com cartas nossas, como de quaisquer mercadores e pessoas que lhas quiserem dar”.[78] De facto, a coroa já possuía naquela época um serviço para o transporte das suas correspondências praticado pelos “moços de estribeira”, cuja responsabilidade estava a cargo de um alto funcionário da Casa Real, o Estribeiro-Mor. Nesse tempo, os moços de estribeira supriam praticamente toda a necessidade de “correios” da corte, sendo Luís Homem uma rara excepção por não ter pertencido ao seu número. Porém, Luís Afonso, seu sucessor no Ofício de Correio-Mor do Reino em 1532, foi escolhido dentre os moços de estribeira que serviam a casa real e cuja função exercia pelo menos desde 1514.[79] Concluindo, mais do que suprir uma necessidade do Estado, a criação do ofício de Correio-Mor veio, em primeiro lugar, preencher uma lacuna na organização do serviço postal regular para um público mais diversificado, vindo posteriormente complementar e melhorar as necessidades de comunicação da própria coroa portuguesa.
[1] Cf. Torre do Tombo, Corpo Cronológico, Parte 1ª, Maço 13, Doc. 40.
[2] Gaspar Correia, Lendas da Índia, Vol. II, Porto, 1975, p. 131; Ásia de João de Barros, Segunda Década, Lisboa, 1974, pp. 221 e 222; e Damião de Góis, Crónica do Felicíssimo Rei D. Manuel, Parte III, Coimbra, 1926, p. 34.
[3] Comentários de Afonso de Albuquerque, Tomo I, Lisboa, 1973, p. 263.
[4] Sobre Tomé Lopes, mercador, vide Anselmo Braamcamp Freire, Notícias da Feitoria de Flandres, Ed. Arquivo Histórico Português, Lisboa, 1920, nota nº 4 da p. 99.
[5] Torre do Tombo, Corpo Cronológico, Parte 1ª, Maço 13, Doc. 40.
[6] Sobre Lourenço Lopes, vide Braacamp Freire, opus cit., pp. 114 e 115.
[7] Sobre Tomé Lopes de Andrade, ibidem, pp. 22 e 88 a 91.
[8] Gaspar Correia, Lendas da Índia, Vol. II, p. 131; Ásia de João de Barros, Segunda Década, pp. 221 e 222; Fernão Lopes de Castanheda, História do Descobrimento e Conquista da Índia pelos Portugueses, Porto, 1979, pp. 574 e 575; e Damião de Góis, Crónica do Felicíssimo Rei D. Manuel, Parte III, p. 34.
[9] Cf. Ata do Conselho de 10 de Outubro de 1510, in Cartas de Afonso de Albuquerque, Tomo II, Lisboa, 1898, pp. 6 a 11.
[10] Comentários..., Tomo I, p. 262; Gaspar Correia, Lendas..., Vol. II, p. 134; e Damião de Góis, Crónica..., Parte III, pp. 35 e 36.
[11] Cf. Ásia de João de Barros, Segunda Década, p. 223; Castanheda, História..., p. 587; e Comentários..., Tomo I, pp. 274 a 277.
[12] Comentários..., Tomo I, p. 277.
[13] Gaspar Correia, Lendas..., Vol. II, p. 138.
[14] Comentários..., pp. 283 e 284.
[15] Cartas de Afonso de Albuquerque, Tomo I, pp. 24 e 25.
[16] Ibidem, p. 432.
[17] Sobre esta problemática vide Marques de Almeida, Capitais e Capitalistas no Comércio da Especiaria, Lisboa, Ed. Cosmos, 1993, p. 24.
[18] Vide “Sumários das Cartas da Índia de Afonso de Albuquerque e Outros, que trouxe Conçalo de Sequeira” in Cartas de Afonso de Albuquerque, Tomo I, pp. 419 e 430, como também Gaspar Correia, Lendas..., Vol. II, p. 156.
[19] Cf. carta de D. Manuel ao Bispo de Segóvia in Cartas de Afonso de Albuquerque, Tomo III, pp. 20 e 21, e ainda: Carta de D. Manuel I ao Rei de Aragão, D. Fernando, sobre a Tomada de Goa, edição e notas de Virgínia Rau e Eduardo Borges Nunes, Lisboa, 1968. Neste último trabalho, ficou comprometida a análise que os autores fizeram desta desconhecida carta ao Rei de Aragão, por terem consultado unicamente os dois primeiros tomos das Cartas de Afonso de Albuquerque, passando dessa forma desapercebida a missiva endereçada ao Bispo de Segóvia, publicada no tomo III, que complementava as notícias anunciadas naquela carta ao Soberano Espanhol.
[20] Torre do Tombo, Corpo Cronológico, Parte 1ª, Maço 13, Doc. 40.
[21] Ibidem.
[22] Sobre o sistema de Quintaladas e Camarotes, vide Vitorino Magalhães Godinho, Os Descobrimentos e a Economia Mundial, Vol. III, Lisboa, Ed. Presença, 1982, pp. 59 e 60.
[23] Ibidem, p. 58.
[24] Cf. o alvará publicado por Braamcamp Freire in Notícias da Feitoria de Flandres, p. 104.
[25] Damião de Góis, Crónica..., Parte IV, p. 73.
[26] Braamcamp Freire, Notícias..., pp. 88 e 89; e Marques de Almeida, Capitais e Capitalistas..., pp. 30 e 31.
[27] Braamcamp Freire, opus cit., pp. 95 e 96; e Doc. XXVII a pp. 170 e 171.
[28] Ibidem, pp. 104 e 105.
[29] Ibidem, Doc. LV, p. 221.
[30] Ibidem, p. 17.
[31] Ibidem, pp. 17 a 22.
[32] Sobre Cristóvão Barroso, vide Damião de Góis, Crónica..., Parte IV, p. 2.
[33] Conde Dom Fernando de Andrade, nobre castelhano que o Rei Carlos I de Espanha acolheu muito bem quando da sua visita à Bruxelas para lhe prestar vassalagem, sendo então nomeado Capitão Geral de Castela, cf. doc. infra.
[34] Carta de Rui Fernandes ao Rei D. Manuel de 6 de Maio de 1516, in Maria do Rosário de Sampaio Themudo Barata, Rui Fernandes de Almada Diplomata Português do Século XVI, Lisboa, 1971, pp. 182 e 183.
[35] Cf. minuta da carta de D. Manuel para Tomé Lopes, in Braamcamp Freire, Notícias..., Doc. LVII, p. 222.
[36] Cf. Torre do Tombo, Fragmentos, Minutas de Cartas Régias, Maço 1, nº 88.
[37] Sobre Francisco de Taxis, vide Berthe Delépinne, “La Poste Internationale en Belgique sous les Grands Maitres des Postes de la Famille de Tassis” in Une Poste Europeenne avec Les Grands Maitres des Postes de la Famille de la Tour et Tassis, Musée Postal, Paris, 1978, p. 20.
[38] Torre do Tombo, Corpo Cronológico, Parte 1ª, Maço 20, Doc. 8.
[39] Carta de Rui Fernandes ao Rei D. Manuel, de 6 de Maio de 1516, in Themudo Barata, Rui Fernandes de Almada..., pp. 182 e 183.
[40] Torre do Tombo, Corpo Cronológico, Parte 1ª, Maço 21, Doc. 82.
[41] Ibidem.
[42] Torre do Tombo, Fragmentos, Minutas de Cartas Régias, Maço 1, nº 88.
[43] Ibidem.
[44] Ibidem.
[45] Cf. Braamcamp Freire, Notícias..., pp. VI, 3, 223 e 224.
[46] Ibidem, Doc. LXIV, p. 227.
[47] Cf. Relações de Pero de Alcáçova Carneiro, Conde da Idanha, do Tempo que Ele e seu Pai, António Carneiro, Serviram de Secretários (1515 a 1568), Ed. de Ernesto de Campos de Andrada, Lisboa, 1937, p. 195.
[48] Crónica..., Parte IV, p. 49.
[49] Braamcamp Freire, Notícias..., p. 223.
[50] Ibidem, Doc. LXII, p. 225.
[51] Ibidem.
[52] Góis, opus cit., Parte IV, p. 73.
[53] Braamcamp Freire, Notícias..., Doc. LXII, pp. 225 e 226.
[54] Ibidem, p. VII.
[55] Ibidem, Doc. LXV, p. 229.
[56] Ibidem, Doc. LXVIII, p. 233.
[57] Ibidem, Doc. LXIII, p. 227.
[58] Ibidem, Doc. LXXII, p. 236. O grifo é nosso.
[59] Ibidem, Docs. LXX a LXXVI e LXXIX a LXXXI, pp. 234 a 244.
[60] Torre do Tombo, Corpo Cronológico, Parte 1ª, Maço 21, Doc. 72.
[61] Arquivo Histórico da Fundação Portuguesa das Comunicações, Documentos dos Séculos XIII a XIX Relativos a Correios, Coligidos por Godofredo Ferreira, Vol. I, Doc. 15.
[62] Torre do Tombo, Cartas Missivas, Maço 2, Doc. 155.
[63] Braamcamp Freire, Notícias..., Doc. LXXXIII, p. 247.
[64] Ibidem, Doc. LXXVIII, pp. 241 e 242.
[65] Ibidem, Doc. LXXXII, p. 246 e Torre do Tombo, Cartas Missivas, Maço 2, Doc. 155.
[66] Sobre esta Embaixada, vide também Braamcamp Freire, Gil Vicente Trovador Mestre da Balança, Lisboa, 2ª ed., 1944, pp. 129 a 132.
[67] Opus cit., Pub. por Alexandre Herculano, Lisboa, 1844, p. 16.
[68] Cf. minuta da carta régia in Corpo Diplomático Português, Tomo II, Lisboa, 1865, p. 10. O grifo é nosso
[69] Cf. Frei Luís de Sousa, Anais..., p. 18.
[70] Cf. minuta da carta régia in As Gavetas da Torre do Tombo, Vol. XI, pp. 205 e 206.
[71] In Corpo Diplomático Português, Tomo II, Lisboa, 1865, p. 11.
[72] Ibidem, p. 16.
[73] Ibidem, p. 17.
[74] Novamente no sentido antigo de novidade, de fazer pela primeira vez e não no actual significado de tornar a fazer. Cf. António de Morais Silva, Grande Dicionário da Língua Portuguesa, 10ª ed., Lisboa, 1954.
[75] Torre do Tombo, Chancelaria de D. Manuel, Livro 37, fl. 98.
[76] Idem, doc. cit.
[77] António Manuel Hespanha, História das Instituições, Coimbra, Ed. Almedina, 1982, p. 394.
[78] Torre do Tombo, Chancelaria de D. Manuel, livro 37, fl. 37v. O grifo é nosso.
[79] Torre do Tombo, Corpo Cronológico, Parte 1ª, maço 16, doc. 25.
A Criação dos Correios Marítimos entre Portugal e o Brasil em 1798
Tratam-se da “Instrução para os Correios do Reino do modo como hão de haver-se com as cartas para o Brasil e Ilhas, depois de estabelecidos os Paquetes Marítimos, e sistema de arrecadação de fazenda, enquanto o Correio estiver por conta do Correio-Mor”, “Instrução para os Correios da América” - que poderemos afirmar ser o primeiro regulamento postal do Brasil - “Instrução para os Comandantes dos Paquetes”, “Instrução para a remessa de encomendas pelos Paquetes Marítimos” e, finalmente, “Instrução para as Juntas de Fazenda dos Estados do Brasil sobre Correios”. Todas elas datadas de 26 de Fevereiro de 1798, dia da assinatura formal do Alvará pelo Príncipe D. João (futuro D. João VI) e do seu respectivo registro nos Livros da Secretaria de Estado da Marinha e Ultramar, à qual caberia a execução desta lei.
Estas “INSTRUÇÕES” - cujos originais se encontram no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, no Códice 67, volume 23, folhas 12 a 27 - já foram publicadas na Alemanha em 1984, através de um pequeno livro nosso em edição bilingue do Grupo de Trabalho Brasil, da Federação Alemã de Filatelia; bem como nos Estados Unidos, em versão reduzida (sem os anexos das “Instruções”), na PORTU-INFO, nº 71 de 1984; e na BULL’S EYES, nº 56 do mesmo ano. Devido à antiguidade destas publicações, julgamos oportuna a reedição daquelas “INSTRUÇÕES”, agora revistas, com novos documentos e alguns esclarecimentos, fruto de investigações posteriores efectuadas em arquivos portugueses.
Assim sendo, a criação dos Correios Marítimos para o Brasil em 1798, se insere no quadro da reformulação postal levado a cabo com a abolição do Ofício de Correio-Mor do Reino e a sua reintegração à Coroa, através do Decreto de 18 de Janeiro e respectivo Alvará de 16 de Março de 1797.
Esta iniciativa foi levada a cabo pelo Ministro e Secretário de Estado da Marinha e Domínios Ultramarinos, D. Rodrigo de Sousa Coutinho. Tendo o mesmo regressado a Lisboa, vindo de uma longa missão diplomática na Corte de Turim, no Reino da Sardenha (1779-1796), assumiu o seu novo cargo como Ministro de Estado em 11 de Setembro de 1796. Logo a 27 do mesmo mês, expediu um ofício circular a todos os governadores das colónias para que informassem aquele Ministério, sobre os meios que se poderiam servir para se estabelecer um Correio com o Reino e os outros Domínios Ultramarinos.
Das respostas enviadas pelos diferentes governadores ultramarinos a este ofício, foi o plano apresentado por seu irmão, D. Francisco de Sousa Coutinho, então Governador do Pará, o escolhido como base para o futuro Alvará de criação dos Correios Marítimos. A bem da verdade, este plano minuciosamente elaborado,[1] era o único concretamente viável dentre os outros apresentados pelas autoridades coloniais. Ainda no ano de 1797, querendo aquele Ministro implementar as várias reformas que tinha em mente realizar em Portugal e nas suas Colónias, relativas aos mais variados aspectos da administração pública, destacou-se a reforma dos serviços postais portugueses de que fora o principal mentor, quando da extinção do Ofício de Correio-Mor do Reino. Desta forma, mandou então publicar no nº 48 da Gazeta de Lisboa de terça-feira, 28 de Novembro deste mesmo ano de 1797, o seguinte aviso:
“Havendo S. M. Determinado que no 1º de Janeiro do ano próximo futuro, saia deste porto um Bergantim, como Correio Marítimo, em direitura ao porto de Assú, na Capitania de Pernambuco, levando cartas para a dita Capitania e para a da Bahia, que deixará no sobredito porto de Assú e no mesmo receberá as que vierem das mencionadas Capitanias para Portugal, devendo depois seguir a sua derrota pelos portos de Paraíba, Parnaíba, Piauí, Maranhão e Salinas na Capitania do Pará, e dali para o Reino, deixando e tomando cartas em todos estes portos; dá-se a saber ao Público, que no Correio desta Corte e na repartição onde se distribuem as cartas do Brasil, se acha uma Caixa com sua abertura e o letreiro Correio Marítimo, na qual quem houver de escrever pelo dito Correio Marítimo, fará lançar as suas cartas. As que se remeterem da Cidade do Porto e mais terras do Reino pelos Correios, para serem expedidas do desta Corte pelo mencionado Correio Marítimo, é necessário que tragam esta declaração no sobrescrito. Custará o porte de cada carta, oitenta réis, sendo do tamanho ordinário.”
Este aviso segue ao pé da letra o plano do Governador do Pará, irmão do Ministro D. Rodrigo, no que se refere ao trajecto do Paquete Correio Marítimo - originalmente composto por um único bergantim - inclusive na reprodução de um grave erro geográfico ao localizar o porto de Assú na Capitania de Pernambuco. Na realidade este porto estava localizado na Capitania do Rio Grande do Norte, que por sua vez fazia fronteira a norte com a Capitania do Ceará e a sul com a da Paraíba, como facilmente constataremos num mapa.
Muito haveria ainda para escrevermos sobre a organização das comunicações postais com as colónias neste período, mas ficará para um futuro trabalho que pretendemos realizar sobre o assunto. De qualquer forma, poderemos concluir, através do anúncio acima da Gazeta de Lisboa, que havia no Correio Geral da Corte uma repartição onde se entregavam as cartas vindas do Brasil. Não nos esqueçamos, porém, que neste período (1798) o correio ainda se encontrava sob administração provisória do Correio-Mor, como facilmente reparamos através do título da primeira “INSTRUÇÃO” acima enunciada. Isto quereria dizer que apesar de o Correio-Mor nunca ter conseguido efectivar a sua jurisdição nas colónias - em especial no Brasil - pelo menos conseguiria usufruir de uma parte da renda auferida pelas cartas vindas daquele Domínio. Um outro aspecto a reter também, será o porte de 80 réis (sugerido no Plano de D. Francisco) para as cartas de “tamanho ordinário”, que vem de encontro à ideia já ventilada num outro artigo nosso[2] sobre o conceito de “carta singela”. Aliás, em relação aos portes dessas correspondências marítimas, no Suplemento à Gazeta de Lisboa do nº 48 de sexta-feira, 1º de Dezembro de 1797, foi publicado o seguinte esclarecimento:
“Sendo conveniente que o porte de oitenta réis, que deve pagar cada Carta do Correio Marítimo, se regule a peso, a fim de que por um modo uniforme e com razão suficiente se estipule a taxa das Cartas mais grossas; dá-se a saber ao Público, que toda a Carta do dito Correio Marítimo que pesar até quatro oitavas, inclusive, pagará somente oitenta réis, as que excederem este peso, pagarão trinta réis por cada oitava que mais pesarem, além das quatro, ficando sujeitos à mesma taxa os maços, papéis ou vias. E tendo ocorrido motivos que não permitem a partida do dito Correio Marítimo no 1º de Janeiro próximo futuro, como se anunciou, ela fica diferida por todo o mês de Janeiro.”
Por este aviso notamos que a progressão da tarifa obedeceria, num primeiro momento, a proporção de 30 réis por oitava a mais de peso, sendo mais tarde estipulada através do Alvará de 20 de Janeiro, a progressão de 40 réis por oitava excedente. O edital anunciava ainda, que ocorrendo “motivos que não permitem a partida” do primeiro Correio Marítimo em 1º de Janeiro de 1798, a mesma ficava adiada para o decorrer daquele mês. As razões para esta mudança de planos são muito variadas e complexas, estando relacionadas com disputas políticas no Ministério de D. João VI e com outros factos que reportam à data anterior a estas resoluções, mas que fogem aos objectivos deste pequeno artigo.
Portanto, o que ocorreu na realidade e em resumo, foi que o Ministro D. Rodrigo de Sousa Coutinho considerou melhor tentar ensaiar antes esse projecto do Correio Marítimo, razão pela qual se publicaram os avisos acima transcritos. Contudo, devido a uma série de circunstâncias, aquele Ministro decidiu criar primeiro uma legislação sobre um serviço que julgava fundamental para o desenvolvimento económico da metrópole com a sua principal colónia. Desta forma, foi elaborado - ainda que um tanto apressadamente - o famoso Alvará de 20 de Janeiro de 1798. Porém, devido à demora na resolução por parte do Príncipe Regente D. João, o mesmo só foi assinado a 26 de Fevereiro. Foi então que para evitar maiores atrasos na execução daquele Alvará e na partida dos primeiros Correios Marítimos, D. Rodrigo resolveu mandar complementá-lo com as cinco “INSTRUÇÕES”, que seguiram manuscritas junto com o Alvará impresso para todas as colónias portuguesas, onde seriam executadas na parte em que fossem aplicáveis.
Ainda na continuidade das providências para fazer partir no início de Março de 1798, os dois primeiros Paquetes Correios Marítimos: Vigilante (para a Bahia e Rio de Janeiro) e Príncipe Real (para Pernambuco, Paraíba, Maranhão e Pará), a Repartição dos Correios de Lisboa publicou um Edital no final do mês de Fevereiro, alertando o público sobre o início deste serviço postal e sobre a possibilidade do envio de pequenas encomendas, “meia carga”, procurando assim rentabilizar a viagem destas embarcações, mas cujo objectivo principal era o transporte da correspondência.
Ao todo, circularam entre Portugal e o Brasil entre 1798 e 1803 (data em que cessaram os Paquetes específicos para este serviço), 16 Correios Marítimos, a saber:
Vigilante, Príncipe Real, Faetonte, Albacora, Voador, Postilhão da América, Gavião, Neptuno, São José Espadarte, Paquete Real, Espadarte Brilhante, Lebre, Santo António Olinda, Caçador, Diligente e Boaventura.
Como demonstração do sucesso e aprovação pública do novo serviço postal, temos o balanço do rendimento das cartas enviadas para o Brasil nas quatro primeiras viagens dos Correios Marítimos (1798), conforme a imagem publicada acima, cujo resultado demonstra claramente o aumento do novo rendimento postal.
Estes resultados fazem lembrar um sucesso semelhante, alcançado quando do início da circulação dos primeiros selos postais.
No entanto, como seria natural, todos os outros navios portugueses, fossem eles da marinha de guerra ou da marinha mercante, passaram a levar a correspondência dos correios com os mesmos portes estipulados pelo Alvará.
Foi nesse sentido que a Gazeta de Lisboa anunciava a criação dos Correios Marítimos, no seu número de 6 de Março, ao publicar a seguinte notícia:
“Por Alvará de 20 de Janeiro de 1798, foi S. M. Servida determinar que do porto desta Cidade partam de dois em dois meses, principiando no 1º do corrente mês de Março, dois Paquetes Correios Marítimos para os Portos do Brasil, um em direitura a Assú, que levará e trará as Cartas das Capitanias de Pernambuco, Maranhão e Pará, indo ao Porto de Salinas; e outro em direitura à Cidade da Bahia, donde passará ao Rio de Janeiro e dali para Portugal, e sendo praticável, fará o seu regresso pela Bahia. Pelos mencionados Paquetes se expedirão Cartas para todo o Continente do Brasil, onde a mesma Senhora manda estabelecer Correios, como também nas Ilhas dos Açores e Madeira, e atendendo outrossim, aos grandes prejuízos que tem resultado ao Comércio e particulares interesses de seus Vassalos, de se remeterem as Cartas pelos navios mercantes sem forma alguma de arrecadação e segurança, e a que subsistindo a mesma prática e extravio, é impossível conservarem-se os Correios Marítimos, foi servida proibi-la, determinando que para o futuro, por todos os navios que saírem dos portos deste Reino para os do Brasil e Ilhas dos Açores e Madeira, ou vierem dos mesmos portos para este Reino, sejam as Cartas remetidas dos Correios em malas fechadas, e que nos mesmos Correios se estabeleçam caixas ou sacos com os nomes dos navios quando partirem, para serem lançadas as Cartas com distinção, segundo pretenderem seus donos, anunciando-se ao público quinze dias antes ao da partida e até que hora se recebem, ficando as que forem ou vierem do Brasil ou Ilhas pelos navios mercantes, sujeitas as mesmas taxas e portes do Correio Marítimo.”
Assim sendo, o Alvará de criação dos Correios Marítimos de 20 de Janeiro de 1798, só terá pleno sentido quando acompanhado pelas cinco “INSTRUÇÕES” de 26 de Fevereiro do mesmo ano, que em anexo transcrevemos na íntegra e que convém desde já chamarmos a atenção para alguns dos seus pontos fundamentais, que poderão elucidar algumas das dúvidas mais importantes da Pré-Filatelia Luso-Brasileira.
Primeiramente, o que assim poderíamos chamar de "registro de nascimento" da carimbologia postal Luso-Brasileira, no que diz respeito ao artigo 15º das “Instruções para o Correio do Reino”, onde se estipulou que: “As cartas serão marcadas, a marca será o nome da terra em cujo correio forem lançadas”. Outrossim, no artigo 17º das “Instruções para o Correio da América”, ordenava: “Nas épocas respectivas, aprontarão as cartas para o Reino e as marcarão com a marca do nome da terra em cujo correio forem lançadas...”. São estas as razões porque será a partir de 1798 (e não devido às “Instruções Práticas para os Correios Assistentes” de 1799), que começarão a surgir as primeiras marcas postais em Portugal, Brasil e Ilhas dos Açores e da Madeira, que todos conhecerão por algumas peças existentes, apesar da sua extrema raridade.
Outra questão também muito importante, será o estipulado no artigo 2º das “Instruções para o Correio do Reino”, que determinava a regra de se colocarem nos sobrescritos das cartas o “nome do navio” que as encaminhariam ao seu destino, pois tratava-se de uma escolha do remetente, razão pela qual eram sempre escritas por ele. Dessa forma, temos o esclarecimento deste procedimento publicado na Gazeta de Lisboa de 23 de Março de 1798, anunciando o seguinte “AVISO”:
“Achando-se ser mais expedito e cómodo ao Público que no Correio, em lugar dos sacos ou caixas com os nomes dos navios mercantes quando partem, haja um sítio propriamente destinado para se lançarem as Cartas que os ditos navios houverem de levar; pela Repartição do mesmo Correio se dá a saber ao Público, que na janela próxima à grade, onde se distribuem as Cartas do Brasil, se acha uma abertura com o seguinte letreiro: Aqui se lançam Cartas para o Brasil e Ilhas dos Açores e Madeira, em cuja abertura quem houver de escrever pelos navios mercantes, fará lançar as suas Cartas, prevenindo-se que as pessoas que pretenderem que as suas Cartas sejam enviadas nos navios que lhes convier, porão nos sobrescritos das mesmas Cartas os nomes dos navios em que devem ser remetidas.”
É também de muito interesse o que rezam os artigos 12º e 13º das “Instruções para o Correio da América”, que explicam como eram elaboradas as “LISTAS” para a distribuição da correspondência, bem como o importante artigo 24º, que previa a “ENTREGA DOMICILIÁRIA” das cartas que não fossem reclamadas. Esta forma de entrega da correspondência poderia ser também uma opção para os destinatários, “carregando-lhe sobre o porte o estipêndio devido ao condutor, que sempre deverá ser moderado”.
Muitos outros detalhes interessantes são descritos no Alvará e nestas “INSTRUÇÕES”, tais como a forma de registro das cartas e o método de manuseio da correspondência no interior do correio. Contudo, para não nos alongarmos ainda mais, deixaremos ao arbítrio do leitor os outros esclarecimentos que poderão ser agora muito úteis, quando da montagem das suas colecções de História Postal.
Em conclusão, podemos agora afirmar que toda a legislação e regulamentação postal publicada posteriormente, a partir de 1799, - Regulamento Provisional dos Correios de 1º de Abril, Instruções Práticas para os Correios Assistentes de 6 de Junho, etc. etc. -, terão como base as disposições incluídas nestas cinco “INSTRUÇÕES” manuscritas que agora reeditamos.
INSTRUÇÃO PARA OS CORREIOS DO REINO DO MODO COMO HÃO DE HAVER-SE COM AS CARTAS PARA O BRASIL E ILHAS, DEPOIS DE ESTABELECIDOS OS PAQUETES MARÍTIMOS, E SISTEMA DE ARRECADAÇÃO DE FAZENDA, ENQUANTO O CORREIO ESTIVER POR CONTA DO CORREIO-MOR
INSTRUÇÃO PARA OS CORREIOS DA AMÉRICA
INSTRUÇÃO PARA OS COMANDANTES DOS PAQUETES
INSTRUÇÃO PARA A REMESSA DE ENCOMENDAS PELOS PAQUETES MARÍTIMOS
INSTRUÇÃO PARA AS JUNTAS DE FAZENDA DOS ESTADOS DO BRASIL SOBRE OS CORREIOS